Sexta feira. Um dia depois do meu aniversário.
Amo o dia do meu aniversário. Bendito o dia em que nasci. Bendito o dia em que disseram: "É uma menina." E dei meu primeiro grito. Para tirar o ar dos meus pulmões e respirar. Como é bom viver!
Mas tenho que enfrentar o gigante Golias, Sr. Ressonância Magnética, o Grande Contraste!
Entro no ônibus. Um calor escaldante. O termômetro marca 36 graus. Está mais. Muito mais. Engarrafamento. Ônibus cheio. Sentada. Mesmo assim apertada. Janela pequena. Cabeça dói. Lateja. Acho que vou chegar atrasada. Vou ter que andar bastante. Quase correr. Os sinais fechados. O ônibus dá uma volta enorme. É melhor descer aqui ou ali? Na próxima. Desço. Caminho. Quase corro. Voo.
Lembro que bebi água. Será que podia? Cheguei. Ufa. Pego a senha. Olho a hora. Em cima. O jejum era só de comida. Ainda bem. Se tem que enfrentar Golias, melhor que seja logo. Odeio lembrar dos gritos dele. Assino a papelada. Passo pela recepção. Me acompanham até o elevador. Desço um andar. Passo por fotos de filmes. Matt Damon. Amo. Mas nem vi que era ele. Só depois que a Fernanda me falou. Só enxergo Golias. Embora nem saiba ainda onde ele está. Escuto seus gritos. Me afrontando.
Deixo todas as minhas coisas em um armário. Ah, ainda posso ficar uns minutos com o celular. Que bom! Posso contar a alguns amigos que estou escutando os gritos de Golias!
Fernanda chegou. Um rosto amigo. Abrigo. Descanso depois do enfrentamento.
Estou sentada na recepção. Veia pulsionada. Em trinta dias, essa mesma veia já foi atacada umas oito vezes. Nem sofre mais. Não reclama. Só se oferece. Sangue pronto. Disponível.
Tenho que ficar sozinha. Falo com alguns amigos ao mesmo tempo. Bendito celular.
Pergunto quanto tempo vou ficar dentro de Golias. Uns trinta e cinco minutos. "Senhor", pergunto, "o que vou fazer lá dentro?" E me programo. Orar, cantar, sonhar, lembrar de tudo que ouvi, li e vi no meu aniversário. Imaginar como será minha festa amanhã? "Senhor, é muito tempo para me concentrar dentro daqueles gritos!" Espero.
Daqui a pouco vou estar dentro de Golias. Dentro dos gritos dele. Odeio gritos. Amo música. Canto da hora que acordo à hora que vou dormir. Canto dormindo. Mas odeio gritos.
Meu consolo é a Fernanda me esperando. E a Júlia chega hoje. Vou estar com minhas três filhas lindas. Só vai faltar o Dudi. E amanhã, a festa que elas estão organizando. E excelência é o nome delas.
Chegou a hora. Desço uma rampa. Enorme. As fotos não são mais do Matt Damon, lindo em Identidade Bourne. Não sei se são de filmes sobre o Holocausto ou se do próprio Holocausto. Não entendo. Estamos indo enfrentar Golias. Por que não colocam um campo florido? Podia até ser Girassóis da Rússia, mas Holocausto? É para aumentar nosso pavor?
Lembro do meu herói. Ele venceu. Com uma funda. E pedrinhas. Vou cantar. Vou cantar. Vou cantar. Vou ficar dentro de Golias e vou cantar.
A enfermeira manda eu sentar em um corredor. Sento. Tem cinco Golias. Todos gritando. Um barulho ensurdecedor. Uma enfermeira sai de dentro de uma sala e lacra um. Lacra. Como se fosse um submarino. E penso, "Senhor, por favor, não quero ficar lacrada, dentro de Golias!" Minha vontade é sair correndo. Sei que não posso. Vou cantar. Vou cantar. Vou cantar.
Vejo dois arquivos. Me lembram Star Trek. Por um instante me desligo daquele horror. Mas não estou na Enterprise. Estou prestes a entrar na boca de Golias.
Percebo que há um quadro atrás de mim. Me levanto. Um alento. Johnny Depp. Simplesmente lindo. Maravilhoso. Sentado num campo florido. Não entendo. Por que a cadeira não está do outro lado? Fico em pé. Um colirio em meio àquele horror. Quase coloco a cadeira do outro lado. Mas fico simplesmente ali, em pé. Lembrando daquele filme. Até que canso. Sento. De costas para o Johnny Depp. Um verdadeiro absurdo. Quando vão me chamar?
Golias, continua gritando. Não apenas um. Vários. Com pessoas lacradas dentro deles. A sala de controle é lá embaixo e os Golias ao meu lado. E se eu passar mal? Não vou poder sair correndo. A porta lacrada. Até alguém subir uma rampa enorme da sala de controle até um dos Golias. "Senhor, tem misericórdia!"
Tenho que ir. Uma enfermeira chama meu nome. Ao lado da sala de controle. Glórias a Deus. Golias está ficando menor. Desço mais uma enorrrrrrme rampa. A porta que ela abre não é de lacrar. É uma maçaneta comum. Glórias a Deus! Golias diminui mais um pouco. Entro na sala. Sua boca é do meu tamanho. Mas é aberto do outro lado. Vou cantar. Vou cantar. Vou cantar.
A enfermeira é doce. Deito. Me cobre. Coloca um fone. Brinco com ela dizendo que podia ter uma música bem gostosa no fone. Ela brinca de volta. Penso que podia ter uns quadros na sala. Do Tyrese Gibson estava bom. Estaria ótimo! Enfim, entro dentro de Golias. Fone no ouvido. Dois protetores. Mais um. Outro. 40 graus lá fora. Ela me oferece um cobertor. Aceito. Frio. Muito frio. Me explica tudo. Nos mínimos detalhes. O contraste só no final. Uma sensação fria. Depois quente.
Entro completamente dentro de Golias. Fecho os olhos. Daqui a pouco ele vai começar a gritar. Berrar. Resolvo que vou orar. E começo a conversar com meu Pai. Golias berra freneticamente. E eu oro. Sorrio. Meu coração por vezes acelera tão alto Golias grita. Não abro os olhos para não me sentir claustrofóbica. Agradeço. A enfermeira pergunta se está tudo bem. Me avisa do contraste. Já? Ela disse que seria somente no fim. "Senhor, me ajuda." Da outra vez, tive uma crise terrível de asma. O contraste é injetado. Remotamente. Minhas veias gelam. Golias berra mais alto. Tento raciocinar. Canto. "Mesmo na escura noite, eu correrei pra Ti meu Pai, és o que preciso, és quem eu procuro ..."
Não consigo cantar com esses berros. Oro. Orar consigo. Minhas veias esquentam. Meu coração acelera. De repente, os berros param. Ela manda eu levantar as pernas. Está ao meu lado. Estou surda. Manda eu levantar. Pergunta se estou bem. Terminou. Estou só um pouco zonza. "Meu Deus, estou ótima."
Acabou. Foi muito mais rápido do que imaginei. Foi mais fácil. Golias é morto. Não me mete mais medo. É uma máquina morta.
Gentilmente ela sobe comigo duas rampas. Fernanda me aguarda. Subimos mais um andar. Estou só um pouco tonta. Acho que mais por fome. Barriga roncando. Vamos almoçar! Vamos comprar uma roupa bem linda para a Duda Linda ir à minha festa de aniversário! Porque a vida é bela e os gigantes estão aí para serem enfrentados e derrubados!
E amanhã é um lindo dia!
Amo a maneira com que escreve ! Realmente alcança até a ingenuidade do entender de uma criança ! Deus te abençoe ,para que continue sendo esta espetácular filha ,que leva de modo tão simples e ao mesmo tempo tão real ,deixando a vontade em nossos corações a vontade de saber mais e mais, mesmo que um dia nos foi apresentado de uma outra maneira ! Beijos mil minha querida e amada prima !!!
ResponderExcluirObrigada prima querida. Beijos.
ResponderExcluirGolias está morto. Eu tenho certeza disso. Amiga você é um presente em nossas vidas. Que venham os gigantes. Derrotamos todos eles, pois maior é o quê está em nós.
ResponderExcluirAmém, amiga querida!Você também é um presente na minha vida. Você sabe, muito especial.
ExcluirVocê escreve com muito talento e autenticidade. Consigo ver você em cada momento do que descreveu. Em meio à ansiedade do desconhecido, você transmite confiança e serenidade.
ResponderExcluirObrigada, Ricardo.
ExcluirÉ muito bom ser percebida quando se escreve.